Sinopse

"Neste espaço encontra-se reunida uma coletânea dos melhores textos, imagens e gráficos sobre o futebol, criteriosamente selecionados e com o objetivo de contribuir para a informação, pesquisa, conhecimento e divulgação deste esporte, considerando seu aspecto multidisciplinar. A escolha do conteúdo, bem como o aspecto de intertextualidade e/ou dialogismo - em suas diversas abordagens - que possa ser observado, são de responsabilidade do comentarista e analista esportivo Benê Lima."

quinta-feira, fevereiro 01, 2018

Uma nova geração de jornalistas esportivos se dedica a pôr mais ciência no futebol brasileiro



Uma nova geração de jornalistas esportivos se dedica a pôr mais ciência 

no futebol brasileiro


Empolgação já não basta. Comentaristas usam cada vez mais estatísticas e termos técnicos para traduzir o que acontece em campo

RAFAEL OLIVEIRA

Não faltam adversidades para quem trabalha na cabine destinada às emissoras de televisão no estádio de São Januário, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Quatro pessoas já tornam o lugar apertado. O ar-condicionado, coberto por uma espessa camada de poeira, obviamente não funciona. O assento das cadeiras balança. Enquanto em campo o Vasco, dono da casa, e o Nova Iguaçu jogam uma partida lenta, cheia de erros e sem lances emocionantes, no seu espaço exíguo o comentarista Raphael Rezende, do SporTV, precisa driblar a pilastra que atrapalha a visibilidade da janela para manter o foco no campo e fazer seu trabalho.
Em seu laptop, Rezende organiza as escalações, os esquemas táticos, as contratações recentes e as mudanças em relação ao último jogo para dar informações aos telespectadores. Empenha-se em anotar a troca de posições dos jogadores quando estes não estão com a bola. “O espectador já não depende de mim. Se eu disser alguma barbaridade, ele me ridiculariza nas redes sociais e para de me ouvir”, diz. “Há muito conteúdo de qualidade na TV e na internet.” Contudo, sua intensa movimentação no teclado para traduzir o jogo e empolgar quem assiste não reflete o que acontece em campo. O jogo segue ruim de doer.

Rezende possui uma das quatro licenças oferecidas pelo curso de formação de treinadores oferecido pela Confederação Brasileira de Futebol, a CBF. Esta semana ele iniciará o processo para obter a segunda. Tem uma biblioteca de 100 volumes sobre futebol, com ênfase para os que tratam de tática. Como ele, diversos comentaristas de emissoras de rádio e televisão estudam o futebol e buscam compreendê-lo do ponto de vista estratégico, para injetar uma dose de razão na apaixonada relação que os une aos torcedores que os acompanham. A tendência que passou a dominar as cabines de imprensa pelos estádios do país valoriza a observação da movimentação coletiva dos jogadores, busca identificar padrões e se apoia em números de acertos e erros de passe, assistências em lances de gol, finalizações, roubadas de bola e número de faltas para traduzir o jogo.


VIDEOGAME  Jogos eletrônicos incorporam a evolução tática do futebol e são treinamento para novas gerações (Foto: Reprodução)
Por tradição, a tarefa de comentar uma partida de futebol sempre foi o oposto disso. A “crônica esportiva” pontificada por lendas como Nelson Rodrigues e Armando Nogueira, entre muitos outros, evocava heróis em campo e fazia da genialidade individual, do empenho coletivo e do imponderável instituições que comandavam o jogo. O belo texto valia tanto quanto – ou mais – que a observação de treinos e jogos. “O padrão para falar de futebol no Brasil costumava abordar aspectos como a qualidade individual do jogador e fatores emocionais”, afirma Carlos Eduardo Mansur, do jornal O Globo, que se especializou em análise de desempenho pela academia da Confederação Brasileira de Futebol, a CBF. “O desafio hoje é estudar o jogo taticamente.” Não havia no passado, obviamente, a ideia nem os recursos técnicos para compilar dados, que hoje sustentam as análises feitas durante os 90 minutos.
O uso de softwares que ajudam a dissecar partidas em números se difundiu nos clubes e transbordou para as redações. Crescem grupos dedicados à tabulação e análise de dados. Como acontece no beisebol e no basquete nos Estados Unidos, estatísticas individuais e coletivas, como o número de finalizações de um atacante e a média de posse de bola de uma equipe, são dados prosaicos em palestras de treinadores e programas de TV, blogs ou jornais. O comentarista da rádio CBN Gabriel Dudziak recorre à tecnologia para superar a barreira da falta de imagem no meio de comunicação em que trabalha. No começo das transmissões, por meio de um aplicativo, faz o desenho tático dos times e divulga a ilustração em seu Twitter para facilitar o entendimento dos ouvintes. “Tento passar o que o técnico traçou para ganhar o jogo. É mais difícil, mas procuro usar termos simples”, diz.
Desde 1992 com uma coluna sobre tática, Paulo Vinícius Coelho, o PVC, pode ser considerado o precursor desta geração de profissionais ávida por conhecimento técnico e por dissecar o jogo por meio de dados e a explicação de esquemas táticos. Faz fichas técnicas de todas as partidas dos campeonatos Paulista, Carioca, Brasileiro e Liga dos Campeões da Europa. Além disso, assiste a cerca de 20 jogos por semana por necessidade do trabalho e para treinar o olhar. Aos 48 anos e mais de 20 de atuação, PVC faz questão de reconhecer que o debate mais aprofundado sobre futebol ainda pertence a um nicho. “No mundo inteiro, fofoca faz mais sucesso que estudo”, diz. PVC está certo. Comentários sobre transferências de jogadores, brigas entre eles ou frases de efeito em mesas-redondas empolgam mais os torcedores. PVC admite, no entanto, que tem mais espaço hoje para fazer o que gosta do que tinha antes. Ele apresenta um programa dedicado a análises e estatísticas no canal FOX Sports, algo impensável tempos atrás.
Como os times usam cada vez mais dados para planejar como jogar, é essencial traduzir isso para o espectador
Detratores desse modelo, no entanto, consideram essa tendência um modismo, uma chatice. Eles se apegam principalmente ao uso de termos etéreos como “amplitude”, “compactação” e “flutuação” por técnicos e comentaristas durante transmissões de jogos e entrevistas para desdenhar. “Há preconceito de quem ouve e exagero de quem usa. A língua portuguesa é rica e está sempre em crescimento”, diz PVC.  “Mas a gente precisa se fazer entender. Não é porque o Tite usa ‘equilíbrio’ que também vou usar.” Excessos ou modismos à parte, não há como fugir da realidade. Comentaristas como PVC apenas acompanham a evolução do futebol. O uso de dados e estatísticas por clubes europeus para elaborar estratégias e jogadas é antigo e há anos chegou aos brasileiros, com maior ou menor simpatia. Não existe futebol bem jogado, em alto nível, sem isso.
Eduardo Cecconi, jornalista, foi analista de desempenho do Grêmio. Quando criança, frequentou a biblioteca pública perto de sua casa, em Porto Alegre, atraído por uma coleção sobre a história das Copas do Mundo. Como os livros eram em inglês, tinha sempre um dicionário a tiracolo. O que o interessava, na realidade, eram as imagens, principalmente aquelas cheias de setas a representar esquemas táticos. “Gostava tanto que reunia meus botões e dava uma preleção a eles só para desenhá-los num quadro.” Tempos depois, frustrado ao perceber que seus textos sobre dados e táticas não atraíam muitos leitores, em 2012 ele bateu à porta do Grêmio e começou a trabalhar como analista do desempenho das categorias de base. Promovido ao time profissional, trabalhou com técnicos como Tite e Roger Machado, conhecidos pela devoção a números e outros aspectos capazes de medir desempenho e criar planos táticos.
Responsável pelo setor de estatísticas da ESPN Brasil, o ex-analista de desempenho do Corinthians Renato Rodrigues não tem ilusões sobre a antipatia que existe não só entre amantes do futebol, mas também entre profissionais, em relação à análise fria. “Eu tive sorte de trabalhar com o Tite e o Mano Menezes”, diz. “Mas essa não é a realidade dos clubes. Ainda há muita resistência.” Eduardo Cecconi percebeu isso no ano passado. Não se deu bem com Renato Gaúcho, um técnico menos afeito que o antecessor Roger ao setor que analisa o desempenho do time e dos adversários. Renato, ídolo do Grêmio como jogador, como treinador levou o time a vencer a Copa Libertadores da América, após mais de 20 anos, e Cecconi deixou o clube em dezembro.
A tarefa de dissecar o jogo por números e dados ajuda a entender, mas não esgota o futebol. Por sua dinâmica, segue como um esporte dos mais imprevisíveis. Um jogo que envolve de 22 a 28 seres humanos, com suas particularidades e vicissitudes, correndo durante 90 minutos em um campo, fiscalizados por outros três seres humanos, e definido por um placar de poucos pontos está extremamente suscetível ao acaso.
A seleção alemã campeã na Copa de 2014 – sim, aquela do 7 a 1 – fez extensivo uso de estatísticas e estudos na sua preparação, como qualquer grande equipe. Uma equipe compilou dados diversos de adversários. Os jogadores alemães tiveram acesso a dados que permitiram prever, com base em informações concretas, para que lado o craque português Cristiano Ronaldo costumava driblar em determinada situação. É claro que, se Lionel Messi estivesse em uma noite melhor, a Argentina teria sido campeã e toda a ciência empregada pelos alemães ficaria esquecida. Assim como dados não ganham jogos, sozinhos não fazem uma transmissão, que precisa de carisma e talento. É por ser assim, suscetível à ciência e ao acaso de forma equivalente, que o futebol é apaixonante.









Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado por seu comentário.
Em breve ele será moderado.
Benê Lima